28/08/2014
Conhecimento indÃgena é preservado em livro de papel sintético
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Obra descreve 109 espécies de plantas medicinais e seus usos. Pajé da etnia Huni Kuĩ, no Acre, é idealizador do projeto e papel é resultado de pesquisa apoiada pela FAPESP (foto:Pascale/divulgação) |
Um papel sintético feito de plástico reciclado – resultado de uma pesquisa desenvolvida com apoio da FAPESP – está ajudando a preservar o conhecimento sobre plantas medicinais transmitido oralmente há séculos pelos pajés do povo Huni Kuĩ do rio Jordão, no Acre.
Descrições de 109 espécies usadas na terapêutica indÃgena, bem como informações sobre a região de ocorrência e as formas de tratamento, foram reunidas no livro Una IsÄ© Kayawa, Livro da Cura, produzido pelo Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IJBRJ) e pela Editora Dantes.
A obra teve uma tiragem de 3 mil exemplares em papel comum, cuchê, voltada ao grande público e lançada recentemente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Outros mil exemplares, destinados exclusivamente aos Ãndios, foram feitos com papel sintético, que é impermeável e tem a textura de papel cuchê, com o intuito de aumentar a durabilidade no ambiente úmido da floresta. O lançamento foi realizado com uma grande festa em uma das aldeias dos Huni KuÄ© do rio Jordão.
O trabalho de pesquisa e organização das informações durou dois anos e meio e foi coordenado pelo botânico Alexandre Quinet, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O grande idealizador do projeto, porém, foi o pajé Agostinho Manduca Mateus Ĩka Muru, que morreu pouco tempo antes de a obra ser concluÃda.
"O pajé Ĩka Muru era um cientista da floresta, observador das plantas. Há mais de 20 anos ele vinha reunindo esse conhecimento até então oral em seus caderninhos. Buscando informações com os mais antigos e transmitindo para os aprendizes de pajé. Ele tinha o sonho de registrar tudo em um livro impresso, como os brancos fazem, e deixar disponÃvel para as gerações futuras", contou Quinet.
Também conhecidos pelos nomes de "Kaxinawá" – termo que os Ãndios não gostam – , "gente verdadeira" ou "gente do cipó", os Huni KuÄ© formam o grupo indÃgena mais numeroso do Acre. Sua presença vai até parte do Peru. No Brasil, somam mais de 7 mil indivÃduos, divididos em 12 diferentes terras. O "livro da cura" retrata a terapêutica praticada nas 33 aldeias de uma dessas terras indÃgenas que se estende pelo rio Jordão.
Além das informações sobre as plantas, a obra apresenta, por meio de relatos e desenhos, um pouco da cultura do povo Huni KuÄ©, como seus hábitos alimentares, suas músicas e suas concepções sobre doença e espiritualidade. Todo o conteúdo está escrito em "hatxa kuÄ©" – lÃngua falada nas aldeias do rio Jordão – e traduzido para o português.
De acordo com Quinet, foram feitas cinco viagens à região acreana para a realização da pesquisa, além de quatro perÃodos de residência de tradutores Huni KuÄ© no Rio de Janeiro.
"Realizamos uma oficina que durou 15 dias e reuniu os 22 pajés das aldeias do rio Jordão. Os capÃtulos do livro são, na verdade, transcrições literais dos temas abordados por eles, organizados dentro da sistemática indÃgena. Apenas sofreram revisões para facilitar a compreensão", contou Quinet.
Das 351 espécies elencadas pelos pajés como medicinais, os pesquisadores coletaram 196 amostras – resultando na seleção das 109 plantas que integram o livro. O material botânico foi identificado de acordo com as técnicas taxonômicas e depositado no herbário do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A partir do nome cientÃfico das espécies, os pesquisadores também levantaram na literatura cientÃfica, quando possÃvel, o uso feito por outros povos do mundo. O trabalho contou com a colaboração de 21 taxonomistas de instituições brasileiras e internacionais.
"O objetivo inicial do pajé Ĩka Muru era criar um material de ensino para aprendizes de pajé, visando a facilitar a localização das plantas nos jardins medicinais. Mas o livro também tem o objetivo de difundir a cultura da tribo e a importância de preservar a floresta de forma ampla. Buscaram o Jardim Botânico para que esse conhecimento pudesse ser universalizado dentro de bases cientÃficas", disse Quinet.
Vitopaper
Para representar o conteúdo escrito em "hatxa kuÄ©", a editora Anna Dantes criou uma fonte tipográfica especial inspirada nas letras manuscritas nos cadernos indÃgenas. Também foi dela a ideia de produzir uma edição especial em papel sintético.
"Logo na primeira reunião feita com os pajés na floresta eu pude observar que os livros enviados para os povos indÃgenas sofrem muitos danos por causa da umidade e tornam-se muito perecÃveis. As páginas vão entortando e grudando umas nas outras. Também são danificadas pela presença de pequenos animais, como cupins. Era um projeto muito ambicioso, que demandaria um grande esforço, e não poderÃamos criar um produto que desapareceria em pouco tempo", disse Dantes.
Dantes contou que foi a primeira vez que trabalhou com o Vitopaper, material produzido pela empresa Vitopel e originalmente desenvolvido por Sati Manrich, pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
"Quando iniciamos o projeto, em 2003, nossa ideia era encontrar uma solução comum a dois grandes problemas: derrubada de árvores para a produção de celulose e a dificuldade de dar um destino adequado ao grande volume de lixo plástico produzido nos centros urbanos", contou Manrich.
No processo desenvolvido por ela na universidade, o plástico oriundo de embalagens de alimentos, produtos de limpeza ou garrafas de água é higienizado e moÃdo. Recebe, então, a adição de partÃculas minerais para a obtenção de propriedades ópticas – como brilho, brancura, contraste, dispersão e absorção de luz – e resistência mecânica ao rasgamento, tração e dobras.
A mistura é colocada em uma máquina extrusora a altas temperaturas, onde amolece e se funde. No final, o material transforma-se em uma folha grande fina, semelhante a um papel fabricado com celulose, que é enrolada e cortada de acordo com a aplicação.
Segundo a Vitopel, para cada tonelada de Vitopaper produzido são retiradas das ruas e lixões 750 quilos de resÃduos plásticos. Além disso, segundo Manrich, cerca de 30 árvores deixam de ser derrubadas.
"Gostaria que esse exemplo fosse adotado não apenas para imortalizar o conhecimento dos Ãndios como também na produção de livros didáticos, pois eles teriam uma durabilidade muito maior", afirmou Manrich.
Una Isĩ Kayawa, Livro da Cura
Organizadores: Agostinho Manduca Mateus Ĩka Muru e Alexandre Quinet
Lançamento: 2014
Preço: R$ 120,00
Páginas: 260
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Fonte: Agência FAPESP
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