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14/04/2016



In Memoriam


Prof. Dr. Douglas Wagner Franco
(21/03/1945 – 07/04/2016)

Este texto foi baseado num outro (escrito em 30/10/2015) que me foi solicitado recentemente pelo Luizinho (Luiz Gonzaga França Lopes, do IQ da UFC) para uma justa homenagem ao Douglas por parte de seus ex-orientados do Nordeste, homenagem esta que se tornou providencial.

É difícil transformar aquele texto; o presente se transforma em passado, mas falar sobre o Douglas é uma tarefa relativamente fácil, pois conheci ele desde o 1º ano do curso de Química, em 1964, no antigo DQ da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, hoje IQ-UNESP, quando uma amizade verdadeira que permitia críticas mútuas se iniciou e se estendeu até o presente; como bons irmãos, discutíamos e também brigávamos. E a tarefa é também difícil em vista de sua importância e do seu imenso rol de atividades e amizades. Há muitas histórias e esta é apenas uma, e espero não ser traído pela memória.

Não farei um relato do seu CV Lattes, facilmente consultável, e nem irei dizer que ele tem mais de 3.400 citações e um índice h 34 (dados de hoje), excelentes para alguém do lado de baixo do Equador. Seus trabalhos são sólidos e não meros trabalhos de confirmação de resultados, trazendo sempre aspectos fundamentais e originais. Falarei algumas poucas coisas que não estão nos bancos de dados (em tempos de google, facebook, e big brother, nem sei mais se posso dizer isso).

O Douglas sempre foi bastante ativo, irrequieto, questionador, curioso, aglutinador. Qualidades importantes para um cientista. Esse caráter trouxe-lhe no curto prazo muitas inimizades, mas que se transformaram em amizades posteriormente. Pouco político a princípio, acabou com posições políticas bem definidas e conhecidas. Pouco diplomático no início também, mudou radicalmente, sem jamais perder a firmeza. Não deixava de ter um coração mole.

Para ilustrar o seu caráter, destaco o primeiro episódio que vem à minha lembrança, e, para isso, dou o contexto. Foi na disciplina de Química Analítica Qualitativa, no 1º ano em Araraquara, 1964. Naquela época, a Química Analítica era venerada e se concentrava em Qualitativa e Quantitativa; usava-se o Vogel de livros-texto, e, basicamente poderíamos dizer que era Química Inorgânica Aplicada. Como é sabido a Química Inorgânica, na virada do século XIX para o XX, progrediu com Werner. Grandes avanços na Estrutura Atômica e Molecular ocorreram até a década de 40, quando ao seu final, a Química Inorgânica renasceu por assim dizer, ao tomar conhecimento das Teorias de Campo Cristalino e Orbitais Moleculares, formuladas mais de uma década antes. Nessa época, a implementação dos fundamentos de cinética e mecanismos de reações inorgânicas teve a contribuição de grandes nomes, como Taube, Basolo e Pearson. Apenas em meados da década de 60 esses avanços em estrutura e reatividade foram incorporados aos livros-texto de Química Inorgânica, que então eram apenas descritivos, tornando-se de Físico-Química Inorgânica. Muito bem; em todas aquelas aulas recebíamos amostras desconhecidas para analisar; valendo nota. Numa delas, e do meu lado, o Douglas mostrou um tubo de ensaio com um teste feito por ele, na qual a solução tinha ficado verde ao adicionar um reagente (pelo que me lembro a cor era essa, estou certo Douglas?), e, com base, na cor, e sem seguir ortodoxamente a marcha analítica, identificou o cátion presente (hoje sabemos que isso é espectroscopia UV-Visível, mas os calouros de então, sem internet e sem webofscience, não sabiam disso). O professor, que em pouco tempo tornou-se nosso amigo, não aceitou a argumentação correta, mas que não constava dos livros-texto. Apesar disso, o Douglas sempre manteve a opinião. Por estar certo, e não por teimosia.

O Douglas foi Químico Analítico de origem. Contratado desde a década de 60 no DQ da FFCL de Ribeirão Preto, doutorou-se no IQ-USP em 1972. Fez pós-graduação em Química Analítica numa época que isto não era exigência para a obtenção de título, viajando entre Ribeirão Preto e São Paulo, sem bolsa – não havia para os do Estado de São Paulo - e sem afastamento em tempo integral. A Analítica lhe forneceu sólidos fundamentos que começou a aplicar já no seu pós-doc logo em seguida no laboratório de Henry Taube em Stanford, quando começou a trabalhar com fosfitos. Por ter uma formação sólida, o Douglas navegou por diversos temas, tais como analítica, inorgânica, química de coordenação, bioinorgânica, catálise, e bebidas. Curiosamente, quando no DQ da FFCL de Ribeirão Preto, no começo da década de 70, o Douglas era um dos principais defensores de se realizar pesquisas relacionadas com a cana de açúcar, por Ribeirão Preto ser um dos maiores pólos, senão o maior, do setor sucro-alcooleiro, mas não de pinga. Esforço debalde (sem trocadilho). Mais tarde, no IQ de São Carlos da USP, montou o laboratório de controle de qualidade e tipificação da aguardente de cana, que se tornou uma referência na área. Muitos de seus visitantes sabem bem disso e já experimentaram das "cachaças" de que ele dispunha, sempre servindo as melhores. Queria transformar a pinga tão importante e famosa quanto o whisky. Os seus trabalhos com óxido nítrico e espécies correlatas sempre foram fundamentais e o levaram a fazer parte do Conselho Editorial da Nitric Oxide. Um artigo de revisão sobre este último tema foi classificado como um dos mais citados da revista Coordination Chemistry Reviews (2003) no período 2003-2005.

O seu caráter ativo e empreendedor sempre se manifestou em muitas coisas hoje corriqueiras e que tiveram o seu envolvimento, ora como idealizador, ora como participante ativo, ora ambos. Por exemplo: criação da 1ª Semana da Química em Ribeirão Preto em 1971. Criação do Simpósio Nacional de Química Inorgânica, hoje BMIC. Criação da Secretaria Regional da SBQ Araraquara-Ribeirão Preto-São Carlos, a primeira da SBQ, em 1979. Criação da Divisão de Química de Alimentos e Bebidas da SBQ. Implantação da Ciência dos Alimentos no curso de graduação do IQSC-USP. Organização de inúmeros eventos científicos, com forte participação de pesquisadores do exterior.

Participou intensamente da vida administrativa tanto na universidade quanto na comunidade científica. Participou de diversos colegiados e comissões de várias naturezas e teve diversos cargos executivos de expressão na USP, tais como Diretor do IQSC-USP, chegando a ser Coordenador da Administração Geral da USP. Foi membro do Conselho Consultivo da SBQ (84-86 e 96-98), e foi uma das poucas vozes atuantes em prol da democratização da SBQ, clamando pela reforma de seus estatutos, já que não vivíamos mais em tempos de exceção. Era o atual Diretor da Divisão de Bebidas e Alimentos da SBQ.

Nos mais de 45 anos de carreira, convidou inúmeros pesquisadores brasileiros e do exterior, para visitas, palestras, seminários, intercâmbios, e atividades correlatas. Compartilhou os visitantes com outros pesquisadores e instituições de todo o Brasil. Isto não beneficiava apenas o seu grupo, mas os demais pesquisadores, mesmo os de estados mais afastados.

Preocupou-se sempre com a formação de recursos humanos. Orientou cerca de 100 mestrados e doutorados. Orientador bastante rigoroso e exigente, sempre esteve ao lado dos alunos, auxiliando-os e incentivando-os. Com ele os orientados tiveram várias oportunidades de intercâmbio científico no Brasil e no exterior, o que certamente os beneficia em sua formação. Vários de seus ex-alunos se tornaram pesquisadores de expressão e estão espalhados em diversas universidades e empresas.

O Douglas estava perdendo peso nos últimos meses. O que de início pode ser considerado bom, passou a ser preocupante, perdendo 20 kg em poucos meses. Ele era extremamente cuidadoso com sua saúde. Consultava médicos, os melhores especialistas, atrás de enésimas opiniões. Mas, a vida prega peças, e tão cuidadoso, foi tardiamente diagnosticado, em março passado, com câncer no pâncreas o qual se alastrou para o fígado. Estava muito debilitado para a segunda quimioterapia; as funções hepáticas estavam prejudicadas, e os rins passaram a não funcionar a contento.

Douglas viveu intensamente e aproveitou bem a vida. Amante dos vinhos e queijos. Deixou muitos amigos e saudades.


Elia Tfouni








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