19/05/2016
Regulamentação da Lei da Biodiversidade é um retrocesso e abre margem para judicialização, avalia especialista
Antes da publicação do decreto, a SBPC encaminhou, em 02 de maio, uma carta ao Ministério do Meio Ambiente, com cópia à Casa Civil e ao MCTI, em que alertava que o texto estabelecia procedimentos "excessivamente" burocráticos, que poderiam atrasar a pesquisa e o desenvolvimento cientÃficos e tecnológicos do PaÃs
Apesar de esforços da comunidade cientÃfica, o decreto que regulamenta a chamada Lei da Biodiversidade (Lei 13.123/2015) representa um retrocesso e conseguiu agravar até mesmo pontos que já eram considerados negativos na legislação, diante da pressa para preencher "o vácuo" jurÃdico no setor. A bióloga Nurit Bensusan, assessora do Instituto Socioambiental (ISA), diz que a lei continua burocrática, gera insegurança jurÃdica e nem sequer assegura os direitos dos detentores dos conhecimentos tradicionais sobre as riquezas naturais que devem ser exploradas pelo setor industrial.
Bensusan, especialista em biodiversidade do Instituto Socioambiental, disse que a regulamentação da lei representa uma "afronta" aos direitos dos povos detentores dos conhecimentos tradicionais em relação à s normas estabelecidas na Convenção da Biodiversidade, que preveem repartição de benefÃcios de forma justa e equitativa. Dessa forma, ela entende que a nova legislação abre espaço para judicialização em sua execução.
O decreto (nº 8772/2016) gerou divergências no próprio governo. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), antes da unificação com a pasta das Comunicações, não assinou o decreto. Já o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) assinaram apenas em última hora o documento. O decreto regulamenta a lei que permite o acesso ao patrimônio genético e a distribuição de riquezas aos detentores de conhecimentos tradicionais que podem ser utilizados pela indústria para agregar valor a conhecimentos. Tais como chás, remédios caseiros e plantas que podem ser utilizadas para fabricação de cosméticos.
Grande parte das recomendações da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foi ignorada na elaboração do decreto. Antes da publicação do decreto, a instituição cientÃfica encaminhou em 02 de maio carta ao Ministério do Meio Ambiente, com cópia à Casa Civil e ao MCTI, em que alertava que o texto estabelecia procedimentos "excessivamente" burocráticos, que poderiam atrasar a pesquisa e o desenvolvimento cientÃficos e tecnológicos do PaÃs, levando à perda da competitividade econômica.
"De que serve sermos um paÃs megadiverso, se de forma justa e sustentável não pudermos beneficiar a sociedade brasileira com o uso adequado desse patrimônio", questiona a carta, disponÃvel aqui.
Ausência de rastreabilidade
Na opinião da bióloga do ISA, o decreto "está cheio de problemas". Segundo disse, um deles é a ausência de rastreabilidade do produto final derivado de conhecimentos tradicionais. Ela aponta falhas no processo de conhecimento prévio informado sobre a exploração comercial do uso do conhecimento tradicional, por faltar instrumentos de controle e de fiscalização. Disse que haverá apenas uma declaração do uso dos conhecimentos tradicionais.
"Isso é ruim para todas as partes envolvidas, principalmente para os detentores de conhecimento tradicional que não terão garantia de que o conhecimento está sendo essencial para agregação de valor do produto colocado no mercado". Segundo ela, da forma como está regulamentada, a repartição de benefÃcios dos conhecimentos tradicionais será uma exceção e não uma regra.
"Esse ponto já estava ruim na lei e o decreto conseguiu piorar ainda mais, e isso vai estimular a judicialização, porque a repartição de benefÃcios que acontece somente de vez em quando não é justa e nem equitativa", disse. Ela prosseguiu: "A indústria poderá colocar um produto no mercado, apenas pelo preenchimento de uma mera declaração e o processo de verificação vai se dar depois, se, eventualmente, alguém achar algo errado e que precisa correr atrás do prejuÃzo".
Composição do CGEN
A composição do plenário do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente também é alvo de várias crÃticas. O decreto desconsiderou a recomendação da SBPC de incluir instituições mais abrangentes para representar a comunidade acadêmica nos assentos, como o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), por estar relacionado diretamente com o financiamento das pesquisas nos estados. Manteve apenas a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a própria SBPC.
Nurit Bensusan criticou o fato de o decreto ter derrubado a cláusula que impedia que instituições, como Fiocruz e Embrapa, usuários do patrimônio genético, fizessem parte do CGEN, para evitar conflito de interesse. Para ela, esse cenário é desfavorável aos detentores dos conhecimentos tradicionais.
"Isso é um absurdo porque são usuários. O governo deveria atuar de forma mais neutra, mas isso não vai acontecer, infelizmente".
Ela disse ainda que a questão do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que tinha assento no CGEN, terá de ser revista, já que o ministério foi extinto pelo presidente interino, Michel Temer. O MDA defenderia os interesses dos pequenos agricultores, um dos detentores dos conhecimentos tradicionais.
Fonte:
Viviane Monteiro/ Jornal da Ciência
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