15/07/2021
In Memorian – Oswaldo Luiz Alves
Os mais íntimos o tratavam no aumentativo: Oswaldão. Se o "ão" era devido ao porte físico, à sua imensa capacidade científica e intelectual, à grandeza de seu caráter, ao seu enorme coração (que, por ironia do destino, o levou de forma tão prematura) ou à sua reconhecida inclinação de engrandecer os fatos, não se sabe ao certo. Provavelmente por todos esses fatores em conjunto. Desde o início da nossa graduação no IQ-UNICAMP, em 1986, o tratávamos respeitosamente por Prof. Oswaldo, o docente responsável por nossa primeira disciplina experimental, e posteriormente nosso orientador do mestrado e do doutorado. Em algum momento da nossa convivência, naturalmente começamos também a chamá-lo de Oswaldão, e olhando agora pelo retrovisor nos damos conta que esse foi o momento da transição (de primeira ordem, claro) que nos aproximou em definitivo.
É impossível desvencilhar a história de vida da trajetória científica do Prof. Oswaldo Luiz Alves, que nos deixou no último dia 10/07/2021. Oswaldo foi um grande exemplo da transformação possibilitada pelo acesso à educação. De origem humilde, conhecia a importância e a responsabilidade de ter sido o primeiro da família a obter um diploma universitário. O colégio de aplicação da USP no final dos anos de 1960 ajudou a forjar o estudante e o cidadão consciente e engajado, possibilitando seu ingresso no recém-criado Instituto de Química da UNICAMP, em 1969. Após graduar-se em 1973, na primeira turma do IQ-UNICAMP, foi convidado para atuar como docente. Teve, então, que parar de tocar bateria na noite campineira, pois a atividade era incompatível com uma carreira acadêmica respeitável, na opinião do Diretor do IQ à época. Apaixonado pelo Blues e pelo Jazz, tivemos a oportunidade de vê-lo tocar, nos anos 1990, em sua última performance pública de que se tem notícia. Infelizmente não logramos sucesso em vê-lo atuando na outra atividade a que se dedicou na juventude: Oswaldo foi ponta-direita da Portuguesa de Desportos, em São Paulo, onde chegou a jogar no time de aspirantes.
Após defender seu doutorado em 1977 também no IQ-UNICAMP, na área de espectroscopia de compostos organometálicos, sob orientação do Prof. Yoshitaka Gushiken, Oswaldo parte para um pos-doc na França, e embora não fazendo parte do seu projeto original, convive com pioneiros da escola francesa de Química do Estado Sólido, tema pelo qual se apaixona e ao qual decide dedicar sua carreira científica no retorno ao Brasil. Como ouvimos várias vezes em seus relatos sempre apaixonados, naquela época as ciências do estado sólido eram coisas de físico e de engenheiro, e não tinham espaço na química. Sua proposta de se dedicar a essa linha de pesquisa não foi muito bem recebida, o que o levou a iniciar seu trabalho nos laboratórios de colegas do Instituto de Física, que resultou numa intensa e profícua colaboração com a comunidade da física brasileira. Não há exagero em afirmar que todos os trabalhos em Química do Estado Sólido realizados atualmente em solo brasileiro tem em alguma extensão o DNA do Oswaldão. Da colaboração com os físicos nasceram projetos grandiosos, incluindo participação efetiva na maior conquista da ciência brasileira de então, o Laboratório Nacional de Luz Sincrotron (LNLS), no qual Oswaldo foi o coordenador cientifico do projeto que implementou a linha de EXAFS. Teve, também, participação em um grande projeto de telecomunicações e fibras óticas vinculado à antiga Telebrás, dentro do qual os primeiros passos daquilo que viria a ser conhecido como Nanociência e Nanotecnologia começaram a ser trilhados no Brasil. Oswaldo rapidamente percebeu o universo que se descortinava, e aliou o conhecimento fantástico que possuía de Química do Estado Sólido e de Espectroscopia a essa nova área emergente, protagonizando novo pioneirismo na associação da Química com a Nanociência e Nanotecnologia, temática pela qual ganhou enorme notoriedade, e a qual se dedicou brilhantemente até o último dia de sua vida. A carreira de sucesso que construiu na sequência impressiona. Dentre as inúmeras contribuições prestadas à comunidade científica e honrarias recebidas, destacamos: foi Presidente da SBQ; membro do CA e do CD do CNPq; membro titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Mundial de Ciências (TWAS); consultor da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) para a área de Nanotecnologia; membro do Comitê Consultivo para a Área de Nanotecnologia do MCTI; membro do Conselho Científico da APAE de São Paulo e do Conselho Técnico Científico do CTI-Renato Archer; Fellow da Royal Society of Chemistry; recebeu a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico e o título de professor Honoris Causa concedido pela Universidade Federal do Ceará.
Tivemos o privilégio de conviver com Oswaldo durante o mestrado e o doutorado, imediatamente antes e após o ponto de inflexão de sua carreira. Para aqueles que tiveram a oportunidade de trabalhar com ele, a experiência transcendeu a colaboração científica ou a formação acadêmica. Dificilmente abordava um assunto, mesmo que específico, sem contextualizar ou fazer conexões. Suas aulas e apresentações em congressos eram daqueles eventos que ao terminar, faziam as pessoas se unirem para conversar.
Discutir ciência com o Oswaldo era uma verdadeira catarse. Surpreendíamo-nos sempre com a facilidade com que ele absorvia a informação que muitas vezes lhe levávamos, e a transformava em uma verdadeira epifania de possibilidades. As lembranças desses momentos, que muitas vezes ocupava uma tarde inteira entre apresentações, anotações, elocubrações e debates, correspondem aos momentos mais enriquecedores de nossa formação.
Oswaldo foi um grande comunicador. Como tal, tinha seus jargões: "Uma coisa é você ter o pó, outra coisa é você ter um filme, uma fibra, uma peça", sobre a realidade que, para um material, a síntese tem que ser integrada ao processamento, se realmente se pretende chegar a uma aplicação; "não se faz ciência em horário comercial"; "a ciência é uma amante exigente"; "não existe a ciência de Barão Geraldo ou de Campinas – a ciência é uma só no mundo"; "a bancada do químico está mudando", em referência às novas possibilidades que se abriam para o profissional da química no início dos anos 1990. No seu círculo mais próximo, havia também algumas frases que sempre ouvíamos. Talvez a mais marcante daquela época foi: "meu carro a álcool não pegou"!!!
Dotado de opiniões firmes, nunca se furtou a ouvir os contrários, e sempre se permitiu o benefício da dúvida. Compartilhava suas visões sobre o contexto acadêmico local, sobre os rumos da ciência no Brasil, e reflexões sobre os desafios tecnológicos, sempre olhando para o futuro. Falava repetidamente sobre os aspectos éticos relacionados com as consequências da atividade científica, e da necessidade do cientista se impor como protagonista para o avanço de países que possuem muitos desafios a superar. Dono de uma retidão e de um comportamento ilibado, chegava ao extremo de declarar sua velha máquina de escrever Remington como bem patrimonial, em seu imposto de renda.
Perdemos muito mais que um cientista. Perdemos um humanista, um pensador, um ativista, um entusiasta, um influenciador, que deixou um legado indelével para a ciência e cultura desse país. Um imortal, que será perpetuado pelo conjunto da sua obra, pelo arrojo e pioneirismo com que construiu sua história. Perdemos muito mais que um Oswaldo. Perdemos o Oswaldão.
Aldo J.G. Zarbin (UFPR) e André Galembeck (UFPE)
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