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Boletim Eletrônico Nº 1607 - 13/06/2024




DESTAQUE

Rossimiriam Freitas assume a presidência da SBQ: "Por isso existimos, por isso lutamos, por isso estamos aqui!"


Quando a mineira Rossimiriam Pereira de Freitas desembarcou em Caxambu para sua primeira Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química, o outono de 1992 trazia ares de mudanças para o Brasil e o mundo. Nas bancas, a então ultra poderosa revista Veja chegava com uma entrevista bombástica com o irmão do corrupto presidente da República – "Pedro Collor conta tudo", dizia a manchete –, e punha querosene no fogo do impeachment. No Rio de Janeiro, o aparato estava pronto para receber 108 chefes de estado para a maior conferência sobre ciência e meio-ambiente realizada até então, a Eco-92.

Para a jovem doutoranda, acostumada a ser a melhor aluna da classe desde os tempos do ginásio, os dias de imersão em química na estância de águas medicinais diziam respeito mesmo a ciência e política. Desde então, ela só perdeu uma ou outra reunião da SBQ por motivo de saúde ou estadia no exterior, e seu trabalho com síntese orgânica se tornou uma referência dentro e fora da Sociedade.

Com a diretora-executiva da SBQ, Dirce Campos

Quando já brilhava na Escola Pública

Em meio à vidraria do laboratório, na França

Com alguns alunos no Labsinto

Com a secretária-geral da SBQ, Profa. Elisa Orth

Em seu discurso de posse

Agora, passadas mais de três décadas da primeira RASBQ, a professora Rossimiriam assume a presidência da SBQ com o objetivo de resgatar o orgulho do pertencimento ao "ser coletivo".

"Para mim, trabalhar pela coletividade, investir tempo, dinheiro, energia e entusiasmo em uma causa de representatividade é uma das formas mais nobres e altruístas de retribuir o que a sociedade nos proporcionou por meio do estudo, do conhecimento e da formação de qualidade que nos foi dada, na maioria das vezes em universidades públicas e gratuitas. Vivemos em um dos países mais desiguais do mundo e temos a obrigação moral, ética e social de permitir que novas e novas gerações mudem as suas vidas por meio do conhecimento e mudem o mundo por meio da química e das descobertas científicas de impacto. Por isso existimos, por isso lutamos, por isso estamos aqui", declarou a presidenta da SBQ em seu discurso de posse, durante a 47a RASBQ, no final de maio, em Águas de Lindóia.

Em sua visão, é incompreensível o fato de químicos não fortalecerem a Sociedade científica mãe originária. "A SBQ é a voz interlocutora da comunidade nos mais diversos órgãos decisórios do país, cujas ações impactarão o presente e o futuro da ciência que abraçamos como sacerdócio em vida! Apoiar uma sociedade científica central tem diversos significados, muito bem reconhecidos por diversos editais e premiações no Brasil e no mundo. Muitas vezes, nós nem sequer nos damos conta de que essa contribuição à uma Sociedade científica diz muito sobre o que somos como profissionais e pessoas, sobre o ser humano além da ciência", prosseguiu, para uma plateia formada por aproximadamente 1,3 mil estudantes, professores e pesquisadores da química, de todas as regiões do Brasil.

À frente da SBQ, Rossi, como é conhecida entre amigos, quer aumentar a capilarização da Sociedade pelo fortalecimento das secretarias regionais, e aumentar o quadro associativo. "A meta é voltar aos 2,8 mil sócios que tínhamos quando eu estava na secretaria geral", avisa. Ela também vai criar uma Ouvidoria, e quer iniciar um trabalho duradouro na questão de diversidade e inclusão.

A professora Rossimiriam graduou-se em Farmácia, pela UFMG, em 1988. Obteve seu doutorado em 1994 também na UFMG, e fez três estágios de pós-doutorado fora do País: dois na França, no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica) e um na Universidade de Montreal, no Canadá. Casada, sem filhos por opção, apaixonada por gatos, ela conversou com o Boletim Eletrônico SBQ sobre diversos assuntos:

Vida Estudantil
Na minha lembrança, eu sempre fui a chamada "primeira aluna" da classe. Eu era uma menina muito franzina, com asma e outros problemas de saúde, preterida nos jogos, desengonçada nas relações sociais, tímida, então acho que me reconheci ao ser valorizada pelos professores e gostei disso. Eu estudava em escola pública, na periferia de Belo Horizonte. Como primeira da classe ganhei bolsa para estudar no Colégio Anchieta, que era uma escola muito boa, super rígida, disciplinada. Lá, tínhamos que descer segurando no corrimão, se não era castigo disciplinar na certa. As meninas ficavam em turmas separadas dos meninos, e tal. Depois, em 1982, fui aprovada na seleção para entrar no Coltec (colégio técnico) da UFMG, uma escola fantástica, muito concorrida. Foi uma revolução para mim, um choque em termos de disciplina. No Coltec as pessoas assistiam aula com pé na carteira, fumando na frente do professor, saindo da sala sem permissão, aquela coisa super liberal. E com uma boa mistura de classes sociais. O Coltec selou meu destino.

Os professores de química eram fantásticos, e sem dúvida foi por influência de muitos deles que estou aqui hoje. O de química orgânica nos levava para trabalhos de campo, aulas em grutas com pinturas rupestres... o colégio era muito revolucionário. Lembro de um texto de uma propaganda, que dizia "o xampu com DNA vegetal". O professor nos provocava: "Vocês acham que o DNA vegetal vai fazer algo pelos seus cabelos?" Já era uma coisa de entender as fake news na propaganda e o conhecimento baseado em evidências.

Universidade
Meus amigos que formavam no Coltec e optavam por fazer química na graduação tinham muita dificuldade com as disciplinas dos primeiros períodos como cálculo numérico, geometria analítica etc. Então eu optei por fazer farmácia. Mas eu gostava de química e gostava muito de bulas de medicamentos. Eu queria entender porque quando você tomava uma aspirina, 15 minutos depois não tinha mais dor de cabeça. Ou quando tinha uma dor de garganta muito forte, a penicilina te melhorava em algumas horas, e tal... Essa curiosidade me levou para a farmácia, onde continuei sendo considerada uma das melhores estudantes da sala. Eu era muito disciplinada. Professores me ofereciam bolsa e fui fazer monitoria desde cedo. Eu precisava trabalhar, e consegui uma bolsa CNPq para fazer Iniciação Científica em química farmacêutica. Isso durou dois anos.

Quando eu me formei em 1988, três professores de diferentes áreas me chamaram para fazer mestrado: imunologia, parasitologia e química. Eu escolhi química. Entrei no mestrado, orientada pela professora Alaíde Braga de Oliveira, e como tive um rendimento bom, ela me convidou para passar direto para o doutorado. Aí surgiu a chance de fazer sanduíche na França, porque minha orientadora tinha uma parceria boa com um pesquisador francês.

Eu também havia passado em um concurso para o Conselho Regional de Farmácia. Recebi também uma proposta para abrir uma farmácia, mas não considerei muito essa oportunidade. Acabei ficando cinco anos e meio no doutorado (direto).

Depois do doutorado, voltei para a França para um pós-doutorado, por razões pessoais, e por isso fui para o Canadá, para meu segundo pós-doc. Foi uma experiência muito boa, mas chegou uma hora que não aguentei mais o frio e a distância das famílias. Passei no concurso na UFMG em 1997.

Experiência no Exterior
Quando fui para a França eu não falava bem o francês, nunca havia saído do Brasil. No início foi muito difícil. Lembro que ganhei bolsa da CAPES e do CNPq. A da Capes tinha possibilidade de renovação, a do CNPQ não, então eu fui com a do CNPq porque não queria ir. Me lembro de ir chorando no voo daqui até Paris. Mas chegando lá, tudo foi incrível, eu não queria mais voltar e me arrependi de não ter aceitado a bolsa renovável. Eu praticamente nunca tinha saído de casa, sequer tinha costume de beber álcool, o que mudou quando eu tomei minha primeira taça de vinho na França, isso aos 26 anos (risos).

Tinha muitos brasileiros lá em Gif-sur-Yvette na França, uma comunidade muito unida, que a gente chamava de Gif-conexão. Num dado momento éramos cinco mineiros morando no mesmo apartamento, incluindo a Rosemeire, que é minha melhor amiga. Nos conhecemos na monitoria de orgânica há cerca de 40 anos, fomos para a França juntas, passamos no concurso na UFMG praticamente juntas, dividimos sala quase a vida inteira, de modo que as pessoas chegavam a nos confundir.

Pesquisa em Síntese Orgânica
Aqui no Brasil a gente fazia coisas simples, como por exemplo pegar uma molécula de antibiótico usado em clínica e modificar para obter substâncias novas e testar sua atividade biológica, o que nos anos 90 era o início da química medicinal, pelo menos nos laboratórios de orgânica do DQ-UFMG.

Aí quando eu fui para a França, existia uma verdadeira 'corrida do ouro' dos químicos orgânicos para se conseguir a síntese total do taxol. Taxol é um antitumoral, hoje usado na clínica médica, mas na época ele havia sido descoberto como uma substância revolucionária no tratamento de câncer, porque curava tumores que eram refratários a vários medicamentos já usados. Só que ele era isolado em uma quantidade muito pequena de caules de árvores centenárias. Para tratar um paciente era preciso abater mais de 100 árvores.

Então químicos orgânicos do mundo inteiro estavam atrás de sintetizar o taxol em grandes quantidades. Aí fui para um laboratório que trabalhava com isso, liderado pelo Dr. Simeon Arseniyadis, um dos químicos mais brilhantes que já conheci, mas extremamente genioso. E eu fiquei trabalhando com uma pequena parte da síntese dessa molécula. Síntese é você preparar uma molécula a partir de uma substância preferencialmente abundante e barata, que você pode adquirir comercialmente e a partir dela fazer reações químicas para construir ligações, colocar funções aqui, ali…um verdadeiro quebra cabeça bem inspirador! Um químico orgânico de síntese sabe as reações que ele pode planejar para chegar a uma molécula final. Pode ser uma molécula natural, uma molécula baseada em uma molécula natural, ou uma molécula nova, totalmente planejada com base em algum pensamento lógico.

Aqui no Labsinto (Laboratório de Síntese Orgânica) eu digo que o meu trabalho é construir moléculas para os mais variados fins, usando meus conhecimentos de síntese orgânica. Uma parte importante é voltada para a química medicinal, então tenho colaboradores em várias áreas. Enviamos novas substâncias para testarem propriedades antiparasitárias, antitumorais, analgésicas, antiinflamatórias…

E tem uma outra parte do meu trabalho em que eu modifico biopolímeros abundantes como celulose, quitosana, bagaço de cana ou outras biomassas, e fazemos reações químicas para obter novos materiais para os mais variados fins: química ambiental, adsorção de poluentes, formação de plásticos de revestimento…

Também atendo demandas de colegas/colaboradores como biólogos, que muitas vezes precisam de moléculas novas para executar suas ideias ou comprovar suas hipóteses. Atualmente, por exemplo, tenho um colaborador que está investigando mecanismos de resistência de fungos a fármacos. Então ele precisou de modificações muito simples em algumas moléculas. Eu atendo esses pedidos porque me sinto muito confortável no papel de construção de novas moléculas. No meu concurso de titular (2019) eles me perguntaram se não me incomodava ter tantas áreas de atuação. Não, porque minha formação é construir moléculas.

Ao longo desses 27 anos de pesquisa, tivemos descobertas muito legais. Tenho esperança que elas ainda possam vir a se tornar alguma coisa importante. Mas falta tempo para investir em todas as moléculas porque a pressão por publicar resultados é muito grande. Para colocar uma substância dessas em atividade, você tem que concentrar toda sua equipe, todo seu tempo, e muito dinheiro naquilo, e passar a vida lutando por aquilo. Eu brinco que quando eu me aposentar, acho que vou ter tempo de ganhar dinheiro. Porque ficaram tantas descobertas na beira de ir para frente…. Mas as demandas no meio acadêmico atropelam a gente.

Militância na SBQ
Em 2011, a professora Heloisa Beraldo (UFMG) me ligou para me sondar. 'O pessoal da SBQ queria que alguém de Minas concorresse a um cargo de diretoria. Nós achamos que essa pessoa é você', ela disse.

Aqui no Departamento eu já tinha exercido essa função de conciliadora e moderadora, de saber conversar com todo mundo e tal. E muitas vezes me chamaram para momentos conflituosos. Me lembro que queriam que eu entrasse no cargo considerado o "mais simples" na diretoria da SBQ, o de tesoureiro adjunto. Aceitei. Quando fui ver, tinham colocado meu nome para concorrer como tesoureira, um cargo de grande responsabilidade. E assim fui eleita na gestão do Prof. Vitor Francisco Ferreira. Como tesoureira, já entrei com o grande desafio de profissionalizar a contabilidade da SBQ. Depois fui eleita de novo como tesoureira, na gestão do Prof. Adriano Andricopulo. Aí, infelizmente veio a doença do prof. Luis Fernando Silva Jr., e acharam que eu tinha perfil para assumir temporariamente a secretaria-geral. Foi um enorme desafio.

Depois fui eleita na gestão do prof. Aldo Zarbin para continuar na secretaria-geral. Era um cargo que eu não queria, porque achava muita responsabilidade, mas aceitei e foi um período muito bom e cheio de aprendizado.

Agora, desde que fui eleita presidente-sucessora, praticamente parei de aceitar alunos para orientar. Estou numa fase da carreira em que quero me dedicar quase integralmente à SBQ durante os próximos dois anos.

Família e gatos
Quando criança, sempre tive animais: gato, macaco, coelho…. mas vivia sendo internada por causa da asma. Já adulta e curada, minha primeira gata veio em 2015. Hoje, moro em uma casa espaçosa e tenho oito gatos, incluindo um que se chama Lavoisier. Na UFMG, desde 2019 faço parte da Comissão Permanente de Políticas Públicas para Animais dos Campi (CPPA). Sou umas das sete servidoras da Universidade nomeadas pela reitora para participar da comissão. Toma tempo, mas é um prazer enorme. A Comissão já recebeu prêmios internacionais pelo trabalho feito. Monitoramos cerca de 90 gatos e 6 cães que nasceram nos campi ou foram abandonados por lá. Todos já foram capturados, castrados e microchipados. Vivem soltos. Os dóceis, nós conseguimos adoção, os ariscos vivem soltos e cuidados pela comunidade. Nos meus momentos de relaxamento é isso que me ocupa a cabeça.

O Leandro Bastos, meu marido, quase foi meu aluno. Dei aula para uma turma de farmácia no ano 2000, mas ele era da outra turma. Fui paraninfa desta turma, virei amiga de muitos deles e temos um grupo chamado "Alegria e Esperança". Eu e Leandro nos encontramos novamente em 2012 e nos casamos em 2015. Com doutorado em Farmacologia e sendo médico anestesista, Leandro é meu porto seguro, meu companheiro de estrada.


Artigos representativos:

PAULINO, R.; ALVES, R. B.; MATALI'SKA, J.; LIPINSKI, P.; FREITAS, R. P. Synthesis of Fentanyl Triazole Derivatives and their Affinity for Mu-Opioid and Sigma-1 Receptors. Journal of the Brazilian Chemical Society, v. 34, p. 1474-1486, 2023.

GONTIJO, T. B.; LIMA, P. S.; ICIMOTO, M. Y.; NEVES, R. L.; DE ALVARENGA, É. C.; CARMONA, A. K.; DE CASTRO, A. A.; RAMALHO, T. C ; DA SILVA JÚNIOR, E. N.; FREITAS, R. P. Cathepsin K inhibitors based on 2-amino-1,3,4-oxadiazole derivatives. Bioorganic Chemistry, v. 109, p. 104662, 2021.

FERREIRA, B. C, S.; TEODORO, F. S.; MAGESTE, A.; GIL, L. F.; GURGEL, L.V.A; FREITAS, R.P. Application of a new carboxylate-functionalized sugarcane bagasse for adsorptive removal of crystal violet from aqueous solution: kinetic, equilibrium and thermodynamic studies. Industrial Crops and Products, v. 65, p. 521-534, 2015.

GONTIJO, V. S.; ESPURI, P. F.; ALVES, R. B. ; CAMARGOS, L. F.; SANTOS, F. V.; SOUZA JUDICE, W. A.; MARQUES, M. J.; FREITAS, R.P. Leishmanicidal, antiproteolytic, and mutagenic evaluation of alkyltriazoles and alkylphosphocholines. European Journal of Medicinal Chemistry, v. 101, p. 24-33, 2015.

FERREIRA, S; Z.; CARNEIRO, H; C.; LARA, H. A.; ALVES, R. B.; RESENDE, J. M. ; OLIVEIRA, H. M. ; SILVA, L. M. ; SANTOS, D. A.; FREITAS, R P. Synthesis of a new peptide-coumarin conjugate: a potential agent against Cryptococcosis. ACS Medicinal Chemistry Letters, v. 6, p. 271-275, 2015.

PEREIRA, G; R; ;SANTOS, L; J; ; LUDUVICO, I. ; ALVES, R. B, ; FREITAS, R. P. Click chemistry as a tool for the facile synthesis of fullerene glycoconjugate derivatives. Tetrahedron Letters, v. 51, p. 1022-1025, 2010.


Fonte: Texto: Mario Henrique Viana (Assessoria de Imprensa da SBQ)



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