SARAU SBQ
The lady in red
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Enquanto ainda estava no último ano de meu curso de Engenharia Química, em 1967, já havia decidido que não seria engenheiro, e sim químico. Vi então, em meados daquele ano, um anúncio no jornal Estado de Minas, publicado pelo então existente Consulado dos Estados Unidos em Belo Horizonte, da abertura de um processo de seleção para candidatos que desejassem fazer pós-graduação naquele país. Vivia-se um período em que as atividades científicas e seu financiamento tinham ganhado muita projeção, em decorrência da grande surpresa que ocorrera dez anos antes, em 1957, com o lançamento, pela União Soviética, do primeiro satélite artificial. Seguiu-se uma intensa corrida espacial entre as duas potências, e os Estados Unidos se deram conta que tinham que dar uma resposta bastante robusta ao desafio que haviam sofrido, sob pena de terem seu status de potência dominante ser rebaixado na visão mundial, com todas as implicações políticas daí advindas. Seguiu-se um incremento extraordinário das atividades educacionais e de pesquisa nas ciências chamadas "duras" nos Estados Unidos. Criaram-se também vários grupos de estudos sobre como mudar para melhor o ensino secundário das ciências no país, que se julgava deficiente, face aos desafios a serem enfrentados naquele momento histórico. Surgiram, por exemplo, várias obras muito interessantes do ponto de vista didático, como os livros Chem Study, e outras obras semelhantes na Física e na Biologia. Estes livros foram traduzidos aqui e largamente utilizados no Brasil. Do ponto de vista de estratégia política, o Senador J. William Fulbright encabeçou a criação de várias atividades em apoio àquele esforço, criando o que veio a ser conhecido como a Comissão Fulbright. Entre outras iniciativas, esta passou a facilitar a concessão de meios para estrangeiros irem fazer cursos de pós-graduação no país. Eu me inseri nesse contexto. Depois de meses de provas de inglês e entrevistas sem fim, tanto com o pessoal diplomático americano como com professores de áreas científicas da UFMG com passado de estudo nos Estados Unidos, fui finalmente selecionado em abril de 1968. Eu me havia formado em dezembro do ano anterior e feito um concurso para professor auxiliar em fevereiro de 1968, de modo que, quando saiu a decisão a respeito de minha ida para o exterior, eu já me encontrava dando aulas na Escola de Engenharia. Solicitei e consegui uma licença de afastamento, para fazer o doutorado. Durante minha ausência ocorreu a Reforma Universitária e foi criado o Instituto de Ciências Exatas, com seu Departamento de Química, para o qual fui transferido, sem mesmo saber o que acontecia. Mais tarde fiquei sabendo que havia ocorrido um grande afunilamento na seleção no Consulado; de 100 candidatos inscritos inicialmente, só dois acabaram indo, e um, que nunca conheci, voltou meses depois. Assim fui protagonista de um pífio rendimento de um por cento. Tornei-me assim o que se chamava na época, de forma grandiloquente, um "Fulbright Scholar". Por isso, meu patrocinador oficial por quatro anos era o Departamento de Estado dos Estados Unidos. Todavia, o Departamento só me deu a passagem aérea, um seguro e o acompanhamento de minhas atividades nos Estados Unidos, através de um instituto educacional que ele mantinha. Também arranjaram para que eu fosse contratado pela Universidade de Maryland, onde estudei, para ser um "teaching assistant", ou seja, mão de obra barata para auxiliar no grande trabalho de ensino de graduação numa universidade com algumas dezenas de milhares de alunos. Foi assim que lecionei aulas de laboratório e de problemas para turmas de 24 alunos, com uma carga semanal de 8 horas. Em adição, eu tinha que assistir, junto a outros colegas em situação idêntica, às três aulas semanais em que as pequenas turmas se juntavam em grandes turmas entre 250 e 300 alunos nas aulas teóricas dadas por um professor do Departamento de Química. Com o tempo também passei ocasionalmente a lecionar para essas turmas grandes. Nossas obrigações, todavia, não acabavam aí. Os assistentes tinham que ajudar o professor nas provas dadas à grande turma em conjunto, e depois auxiliar na correção das mesmas. Era muito trabalho, para pouca remuneração. Trabalhei dessa maneira durante todo o período em que passei lá, dando aulas em várias áreas, Química Geral, Química Inorgânica e Química Orgânica. Só em meu último semestre é que fui dispensado de dar aulas, porque ganhei um prêmio, oriundo de votação de todo o corpo de alunos de graduação, denominado "Best Teaching Award". Ironicamente, o prêmio consistia na dispensa da obrigação de lecionar, mas foi muito bem recebido por mim, porque eu precisava de mais tempo para ultimar a tese, que foi feita dentro do prazo regulamentar de quatro anos, mesmo com todas as atividades didáticas que exercia. Apesar de tudo, foi uma excelente experiência, com a qual muito lucrei, e ela me foi de enorme valia depois de retornar ao Brasil.
Além do mais, a Universidade de Maryland fica em College Park, um subúrbio da capital americana, e esta oferecia incontáveis oportunidades culturais de ótimo nível, que fiz questão de aproveitar sempre que podia.
Antes de chegar em setembro de 1968 em Maryland, porém, fui convidado pelo Departamento de Estado a tomar parte, durante todo o mês de agosto, num curso de "orientação para estudantes estrangeiros", a ter lugar na Universidade de Indiana, em seu belo campus na cidade de Bloomington, naquele estado. Embora eu já falasse inglês, nunca havia tido a experiência de ouvir a língua o tempo todo, e ter que pensar apenas em inglês, de modo que aquela experiência foi valiosa, pois sabia que assim que chegasse a Maryland teria que começar logo a dar aulas. O tal curso de orientação tinha 75 alunos, de todas as partes do mundo, inclusive de alguns países da Cortina de Ferro. Isso foi no auge da Guerra Fria. Entre os alunos havia três brasileiros. Além de mim lá estavam uma moça carioca e um rapaz paulista. A experiência foi muito curiosa, e fomos até pagos para vivenciá-la. Ficamos muito bem alojados em dormitório da universidade, que estava vazia pelas férias de verão. Todas as manhãs tínhamos que ir cedo a uma conferência de algum professor, que nos despejava uma torrente de patriotadas, dizendo como os Estados Unidos eram o mais belo e poderoso país do mundo, como o seu sistema político é o mais avançado que existe, e coisas do mesmo teor. Eles não se davam conta do ridículo que era essa tentativa de lavagem cerebral de estrangeiros, apresentada de forma tão primária. Nessa época, o país já estava envolvido até o pescoço na guerra civil do Vietnã, com milhares de vítimas fatais de ambos os lados, mas nunca ouvimos uma única palavra a esse respeito. Depois das conferências, nós nos dividíamos em grupos pequenos, de acordo com nossas áreas de estudo. Eu ficava no grupo de ciências exatas, e nos dirigíamos para o prédio do Departamento de Química, onde tínhamos contacto com os laboratórios de pesquisa e com seus professores. Um dia, um professor disse que gostaria que nós conhecêssemos um estudante que acabara de defender sua tese de Ph.D. em Química, e queria que ele nos relatasse como havia sido sua experiência de estudar nos Estados Unidos. Para minha surpresa, ele era brasileiro, e foi assim que conheci o Dr. Eduardo Peixoto, que veio a tornar-se meu amigo, e foi por muitos anos professor na USP, um dos principais fundadores da Sociedade Brasileira de Química, seu primeiro Secretário Geral e fundador da revista Química Nova.
Depois que acabou o estágio em Indiana, fui à cidade de Indianapolis e tomei um avião até Washington, para assumir meu posto em Maryland. Quando o avião se aproximava da capital, o comandante do voo tomou o microfone e disse meu nome no alto-falante de bordo. Ele dizia que no aeroporto, haveria uma senhora vestida de vermelho à minha espera, e enfatizou que seria "a lady in red". Era mais um dos pormenores do Departamento de Estado, para que eu fosse acolhido por uma família americana até ter onde viver em meu destino. Saí do avião e comecei a procurar no aeroporto a tal "lady in red". Vi então uma senhora de idade, baixinha e gordinha, toda de vermelho. Dirigi-me a ela e me apresentei. A mulher fez uma cara de espanto tão grande que não sabia o que dizer, e eu tampouco. Nesse momento, veio até o local uma jovem sorridente, também vestida de vermelho. Era Jackie Kalhammer, de quem depois me tornaria muito amigo, junto com seu marido Fred. Até hoje nos correspondemos pela Internet. Os dois eram pouco mais velhos que eu e já haviam vivido e trabalhado em vários países da América Latina. A partir da hospitalidade dos dois comecei minha nova vida.
Prof. Carlos Alberto Lombardi Filgueiras, ex-presidente da SBQ 1990-1992
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