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Saúde em risco: químicos alertam para os prejuízos do material particulado
Às 17h do sábado, 24 de agosto, o céu escureceu em Ribeirão Preto, no cinturão da cana-de-açúcar, no interior de São Paulo. A medição da radiação solar que chegou a bater 717 W/m2 no início da tarde caiu para zero, os níveis de material particulado (MP2,5 e MP10) medidos pela Cetesb vinham subindo desde a madrugada e o índice de qualidade do ar estava em "muito ruim", a caminho do "péssimo", o dia virou noite. Às 19h, a média horária de MP10 chegou a 3.466 µg/m3 e o MP2,5 chegou a 1.392 µg/m3. Como referência, a legislação paulista (Decreto Estadual 59.113 - MI2) preconiza que a média de 24h não deve ultrapassar os valores de 100 e 50 µg/m3 para MP10 e MP2,5, respectivamente.
Em Manaus, a situação não tem sido muito diferente nas últimas semanas. Na última segunda-feira, 23 de setembro, a professora Karenn Silveira Fernandes (UFAM) foi trabalhar de máscara, como proteção ao forte cheiro de fumaça que tomava conta da cidade logo cedo.
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Karenn Silveira Fernandes (UFAM): "Sabemos que as menores partículas chegam ao pulmão e à corrente sanguínea, aumenta a quantidade de radicais livres, traz problemas pulmonares e cardíacos e pode levar a um câncer de pulmão no futuro"
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Enquanto o governo tenta controlar os focos de incêndio espalhados pelo país, a imprensa tenta relatar o que vem acontecendo, químicos têm estudado os efeitos da fumaça sobre a saúde humana e o meio-ambiente. O conhecimento químico idealmente seria utilizado pelo poder público e pela população na tomada de decisões. O material particulado é decorrente de fontes naturais como a ressuspensão do solo e também de qualquer queima incompleta, seja uma fogueira, ou um motor automotivo. "Sabemos que as menores partículas chegam ao pulmão e à corrente sanguínea, aumenta a quantidade de radicais livres, traz problemas pulmonares e cardíacos e pode levar a um câncer de pulmão no futuro", afirma a docente, que estuda a química da atmosfera em Manaus desde sua iniciação científica.
Em sua tese, Karenn qualificou e quantificou os ácidos dicarboxílicos (DCA) presentes no MP2,5 em Manaus. Esses ácidos participam na atmosfera como núcleos de condensação de nuvens, logo, alterações na composição e proporção influenciarão na taxa de formação de nuvens, levando a possíveis diminuições nos índices pluviométricos e alteração do balanço radiativo da região. Ela coletou o material particulado nas estações secas de 2017 e 2018. "Os DCA coletados na cidade de Manaus foram amplamente influenciados pela queima de combustíveis fósseis, com alterações na composição, formação e grau de acidez quando este aerossol orgânico esteve sob uma maior influência da queima de biomassa observada em 2018", escreveu a pesquisadora.
Ela tem percebido uma piora na fumaça com o passar dos anos. "O primeiro grande evento dos efeitos da fumaça em Manaus foi em 2015. Desde então, vem acontecendo todo ano. E este ano, a fumaça chegou mais cedo, no início de agosto", relata Karenn.
O físico Rodrigo Souza, docente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) criou um app que monitora em tempo real a qualidade do ar, os focos de incêndio, temporais, ventos e descargas elétricas em toda a região amazônica. O app Selva (https://appselva.com.br/) trabalha com dados de parceiros e de uma série de sensores de baixo custo que Souza instalou na região metropolitana de Manaus. "Embora muitas instituições monitorem os incêndios florestais na Amazônia por meio de um sistema de relatórios diários e mensais, nenhum órgão tem capacidade de fornecer informações sobre a ocorrência de incêndios e a qualidade do ar em tempo real para a população local", afirma. "Com o Selva, embora não tenhamos sensores com a mesma confiabilidade dos utilizados pela Cetesb em São Paulo, estamos não somente disponibilizando essas informações em tempo real, como fazendo uma grande divulgação científica sobre os efeitos das queimadas."
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Em 2019, os incêndios florestais aumentaram em média 25 vezes as taxas de internações por doenças respiratórias na Amazônia, sendo as populações indígenas e tradicionais as mais afetadas, principalmente as pessoas maiores de 50 e menores de 5 anos. Nesse mesmo ano, 81 dos 616 municípios da Amazônia Legal brasileira apresentaram concentração de MP2,5 acima do limite considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde, e os custos estimados com a saúde da população de baixa renda devido a tratamento por poluição do ar foi de aproximadamente R$ 1,5 milhão.
A escuridão do dia 24 de agosto em Ribeirão Preto assustou a química Lúcia Campos, docente na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da USP. "Quando cheguei a Ribeirão Preto, em 2001, havia uma campanha contra a queima da cana antes da colheita, cujo mote era 'Queremos respirar'", conta. Nos dias atuais, a legislação paulista, assim como um acordo agroambiental, levaram a mecanização da colheita da cana em quase 100%, mas o problema da queima de biomassa continua.
Uma tese recente defendida por sua ex-aluna Caroline Scaramboni avaliou in vitro a toxicidade das partículas. Para isso, o grupo coletou amostras de material particulado menor que 2,5 micrômetros entre 2020 e 2021.
"Determinamos a concentração de compostos da classe dos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPA), sendo que alguns de comprovada ação carcinogênica, que são emitidos durante a queima de biomassa. Ainda que na região de Ribeirão Preto a área de queima de biomassa seja muito menor do que em regiões da Amazônia, as concentrações desses compostos foram próximas", conta a autora do trabalho.
Com esses valores de concentração, as pesquisadoras puderam determinar o risco de câncer desse material particulado, que é expresso como Benzo(a)pireno equivalente (B[a]P). No caso das amostras coletadas na estação seca (quando há maior queima de biomassa), o risco de câncer foi três vezes maior do que na estação úmida. No entanto, o mais preocupante foi quando houve queimadas próximas da área urbana. "O risco de câncer foi 23 x maior. O risco logicamente irá depender do tempo de exposição e da intensidade ao longo da vida da pessoa. Tudo isso são cálculos teóricos. Então fizemos testes toxicológicos", explica a professora Lúcia Campos.
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Lúcia Campos (FFCLRP-USP): "Temos evidências de que o material particulado produzido durante as queimadas da região de Ribeirão Preto, além de poderem causar efeitos adversos à saúde humana de forma aguda, podem, a longo prazo, aumentar o risco de câncer"
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Para isso, elas utilizaram células de fígado humano. "Nós amostramos o material particulado atmosférico, fazemos um extrato e colocamos as células junto a esse material", conta a professora. A conclusão foi que amostras de MP coletadas na época da seca foram mais tóxicas quando comparadas com aquelas coletadas na época úmida. Além disso, foi detectado dano persistente no DNA.
"Temos evidências de que o material particulado produzido durante as queimadas da região de Ribeirão Preto, além de poderem causar efeitos adversos à saúde humana de forma aguda, podem, a longo prazo, aumentar o risco de câncer", resume a docente.
A situação desperta um mix de sentimentos na professora Karenn SIlveira Fernandes, da UFAM. "Primeiro vem a raiva e a dificuldade de compreender porque estamos queimando o mundo em que vivemos. Depois vem uma sensação de impotência: eu sei o que estou respirando e os malefícios que isso causa no curto e no longo prazo. Mas apesar de tudo que publicamos, das aulas que damos, dos nossos gritos de alerta, os governos nas várias esferas parecem não se importar. Aí vem um sopro de otimismo, porque se não consigo transformar a visão das autoridades, consigo transformar meu microambiente, meus alunos, vizinhos e amigos." Só assim, ela acredita, iremos aos poucos construindo esse necessário conhecimento ambiental.
Texto: Mario Henrique Viana (Assessoria de Imprensa da SBQ)
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