SARAU SBQ
"A Zeroquímica– uma ciência desprezada"
Nessa edição, temos o texto "A Zeroquímica", escrita pelo Prof. Carlos Alberto Lombardi Filgueiras, durante a pandemia. Ele foi ex-presidente da SBQ na gestão 1990-1992. Ainda, foi por muitos anos professor da Universidade Federal de Minas Gerais (1968-1997) e depois professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (de 1997 a 2010). No início de 2010 tornou-se pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais.
Tradicionalmente, os livros de química orgânica elementar começam a discutir os hidrocarbonetos pelos alcanos, dizendo que sua fórmula geral é CnH2n+2. Até aí, tudo bem. O que vem a seguir é uma arbitrariedade, pois dizem que o primeiro composto da série é aquele para o qual n = 1. Ora, por que desprezar o zero? Quando n = 0, temos efetivamente o alcano mais simples, que é o zerano, precursor de uma química interessantíssima, a zeroquímica. Analogamente, quando tratamos dos alquenos, de fórmula geral CnH2n, se n for zero teremos o zereno, um alqueno tão notável e sui-generis como desprezado.
O zereno já provocou polêmicas milenares entre seus defensores e detratores. Entre estes últimos, filósofos de alto coturno, como Aristóteles e Descartes, jamais admitiram sua existência. Atribui-se ao filósofo grego a famosa máxima de que "a natureza tem horror ao zereno". A história nos ensina que a descoberta do zereno, embora de forma mitigada e impura, deveu-se a um físico, o famoso discípulo de Galileo, Evangelista Torricelli, inventor do barômetro. Quando um longo tubo contendo mercúrio é invertido sobre uma cuba cheia do mesmo metal, mantida ao nível do mar, o nível do mercúrio no tubo desce até à marca de 760 milímetros de altura sobre o nível do líquido na cuba. O resto do tubo fica preenchido por uma mistura de zereno e vapor de mercúrio. Isaac Newton, que viveu um pouco depois, não admitia o universo sem zereno. No entanto, durante séculos se pensou que o universo estivesse preenchido, não com o que muitos consideravam o abominável zereno, mas com uma substância sutil, o tal éter interestelar, que seria o meio por onde se propagariam as ondas luminosas. A busca por esse éter mostrou-se infrutífera, e revelou como o preconceito contra a zeroquímica era arraigado. Só no início do século 20 se mostrou que, de fato, o éter não existe, e o universo está permeado pelo zereno, o que não se queria admitir. Hoje é ponto pacífico que a luz se propague pelo zereno. Admitindo-se o caráter dual da luz, de onda e partícula, a dificuldade conceitual fica superada. Hoje tampouco se admite que o espaço interestelar seja ocupado por zereno puro; afinal, há que se levar em conta a poeira interestelar e toda a radiação que o permeia, assim como os campos gravitacionais e eletromagnéticos.
O primeiro químico a obter o zereno em forma mais pura foi William Ramsay, descobridor dos gases nobres. Por destilação fracionada do ar seco liquefeito ele obteve sucessivamente os componentes principais, como o oxigênio e o nitrogênio, obtendo também dióxido de carbono, argônio e traços de outros gases. O resíduo era zereno em alto grau de pureza.
Como ocorre com os alquenos em geral, a hidrogenação do zereno produz o zerano. Do zerano, por sua vez, obtém-se o grupo zerila, análogo aos outros grupos alquila. Este grupo entra na composição de inúmeros compostos interessantes. Por exemplo, o cloreto de zerila, bem como o sulfato e o nitrato, devem ser compostos de caráter ácido acentuado quando dissolvidos em água. O cloreto de zerila pode ser obtido por reação direta do zerano com o cloro; presume-se que seja uma reação violenta e que o produto seja um gás bastante solúvel em água.
Naturalmente, como o zerano é um alcano, ele também pode ser associado a um álcool correspondente. Este é o zeranol (ou zerol, já que a IUPAC ainda não se pronunciou oficialmente a respeito da nomenclatura mais adequada aos zerocompostos). O zeranol é o álcool de menor massa molar conhecida. É de esperar-se que o zeranol seja um líquido, em virtude das ligações de hidrogênio que ele pode formar. Além disso, pode-se prever que ele seja bastante polar; logo, o zeranol parece ser um solvente promissor para dissolver solutos iônicos ou bastante polares. Muitas outras analogias podem ser aduzidas, uma vez que o grupo zerila é isolobular com os grupos alquila.
Ao contrário de seus dois congêneres mais pesados, o metanol e o etanol, o zeranol não apresenta qualquer tipo de toxicidade. Na verdade, ele é essencial à vida. Presume-se que a vida na Terra tenha começado no zeranol, que protegia os organismos mais primitivos da ação destrutiva da radiação ultravioleta do sol, numa época em que a atmosfera terrestre ainda não dispunha de oxigênio e, consequentemente, da camada de ozônio que absorve a maior parte daquela radiação.
O zerano pode ser obtido de várias maneiras: entre estas, a eletrólise de uma solução aquosa diluída de sulfato de zerila é bastante adequada. O grupo zerila, por sua vez, pode ocorrer na forma de radical livre, na forma catiônica (que se obtém da dissociação do sulfato de zerila, por exemplo), ou na forma aniônica, que é o poderoso agente redutor zerileto (ou zereto). Outra forma de realizar reduções de maneira eficaz, principalmente de compostos orgânicos insaturados, é a utilização de zerano adsorvido por certos metais, como o níquel ou o paládio, ou na forma de zeriletos metálicos, como o zerileto de lítio e alumínio.
Hoje em dia há muita preocupação em torno de dois grandes problemas químicos e tecnológicos: como obter zerano em grandes quantidades e como armazená-lo com segurança e usá-lo como fonte de energia, sobretudo para veículos automotores. O zerano poderá ser o combustível do futuro, com grande vantagem sobre os hidrocarbonetos usuais. A vantagem se deve a dois fatores fundamentais. Em primeiro lugar, o zerano é facilmente reciclável, logo pode ser considerado como uma fonte inesgotável de energia, ao contrário do carvão ou dos hidrocarbonetos do petróleo. A segunda consideração, também de grande peso, é que a queima do zerano não produz poluição. Nada de gás carbônico e seu potencial de aumento do efeito estufa, nada de negro de fumo ou qualquer outro produto deletério. Apenas zeranol, que é completamente inócuo, e não se acumula na atmosfera de forma tão perigosa como o gás carbônico. Todavia, muita pesquisa ainda precisa ser feita para que se possa usar o zerano em larga escala como fonte de energia.
Vou parar por aqui; afinal a zeroquímica é um ramo fascinante da nossa ciência, e eu poderia estender-me ad infinitum falando sobre ela. Ao invés disso, sugiro que os leitores meditem e venham eventualmente a contribuir para o crescimento da especialidade. Afinal, é injusto o desprezo dos químicos em relação à zeroquímica, um desprezo preconceituoso e sem fundamento.
Prof. Carlos Alberto Lombardi Filgueiras, ex-presidente da SBQ 1990-1992
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