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Como o metanol pode ir parar em bebidas?
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Casos de envenenamento em massa por metanol não são raros, e têm sido relatados em diversos países do mundo, sendo monitorados por diversos órgãos internacionais. Em 2013, por exemplo, 1066 casos foram relatados na Líbia, resultando em 101 mortes. Em 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou para o aumento de surtos de intoxicação por metanol em muitos países, incluindo Quênia, Gâmbia, Líbia, Uganda, Índia, Equador, Indonésia, Nicarágua, Paquistão, Turquia, República Tcheca, Estônia e Noruega. Esses surtos envolveram entre 20 e 800 vítimas, apresentando, em alguns casos, taxas de letalidade superiores a 30%. Em 2020, 5876 pessoas foram intoxicadas no Irã, com mais de 500 mortes. Entre 2024 e 2025 centenas de casos foram registrados na Índia, Tailândia, Bangladesh, Kuwait e outros países.
Esses casos de envenenamento por metanol são consequência de dois tipos de situação: consumo de bebidas criminalmente adulteradas ou consumo de destilados produzidos informalmente e sem o conhecimento técnico necessário. Isso porque, além do etanol, o metanol também pode ser formado durante o processo de fermentação natural a partir de frutas, grãos, cana de açúcar etc., em quantidades variáveis, em função dos microrganismos presentes ou do tipo de matéria prima usada. Após a fermentação, para a preparação de bebidas destiladas como cachaça, vodca, uísque, gin, rum, tequila, conhaque, por exemplo, vem o processo de destilação, para concentração do álcool e das substâncias aromáticas. Durante este processo, o metanol, por ter ponto de ebulição menor (64,7oC) que o etanol (78,4oC) é destilado primeiro e essa chamada "cabeça de destilação" deve ser desprezada. No conhecimento ancestral, se dizia "não se bebe a cabeceira" quando se produzia, por exemplo, a cachaça. Assim, se a produção for artesanal e não vier acompanhada desse conhecimento (desprezo dessa "cabeça"), os destilados podem estar contaminados com uma quantidade considerável de metanol que, dependendo da concentração e da dose ingerida por uma pessoa, pode ser tóxico ou letal.
Nos recentes casos de intoxicação no Brasil, entretanto, se os relatos que apareceram na imprensa até o momento forem fidedignos (cegueira com três doses de caipirinha, por exemplo) dificilmente se trata apenas de metanol produzido naturalmente em fermentação ou metanol usado apenas para lavagem de garrafas, como tem sido também aventado, uma vez que a concentração não seria tão alta nessas situações. Nesse caso, o mais provável é que tenha sido mistura proposital entre metanol e etanol para adulteração, por razões econômicas ou outras, mas é preciso aguardar as investigações. Vale ressaltar que todo o metanol usado industrialmente no Brasil é importado, produzido principalmente por síntese química (a partir de CO/H2, sob alta pressão e temperatura, na presença de catalisadores) e, se adquirido de forma legal, este metanol tradicional tem um custo em torno de 300 dólares a tonelada (o preço da tonelada de etanol seria próximo do dobro). Apenas o chamado metanol verde - obtido a partir de recursos renováveis - apresenta um preço de mercado significativamente mais alto que o do etanol (entre 800 e 900 dólares por tonelada) e é bastante improvável que esse tipo tenha sido o utilizado em uma possível adulteração.
Esta situação nos ensina mais uma vez que a química está em toda parte, explica tudo ao nosso redor e compreendê-la é a melhor forma de construir uma vida segura.
Rossimiriam Freitas (Presidenta da Sociedade Brasileira de Química - SBQ)
Referências:
https://www.methanol.org/
https://methanolpoisoning.msf.org/en/outbreaks-worldwide/
Ohimain, E.I. Methanol contamination in traditionally fermented alcoholic beverages: the microbial dimension. SpringerPlus 5, 1607 (2016).
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