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Boletim Eletrônico Nº 1670 - 16/10/2025




DESTAQUE

Metanol: o preço do descuido
E o potencial do Brasil na produção de fármacos


Continua na mídia o registro quase diário de novos casos de intoxicação e morte por bebidas adulteradas contendo metanol. O último grande surto dessa natureza registrado no Brasil ocorreu na Bahia, em 1999, quando 35 pessoas morreram e mais de 450 foram intoxicadas.

A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) mantém um registro atualizado dos casos de morte e intoxicação por metanol desde 1998, incluindo os mais recentes do Brasil. Além desses, apenas no mês de setembro deste ano, mais de 60 mortes foram registradas em Bangladesh, Indonésia, Colômbia e Rússia. No ano de 2025, já são mais de 350 mortes, mostrando que o que ocorre no Brasil não é um caso isolado.

Segundo o portal da MSF, desde 1998 ocorreram mais de 14.000 mortes e cerca de 40.000 pessoas afetadas em várias partes do mundo, sobretudo na Ásia, África e América Latina. Organizações que acompanham esses casos apontam que a Ásia concentra o maior número de surtos, com relatos recorrentes na Indonésia, Índia, Camboja, Vietnã e Filipinas.

A origem das contaminações é quase sempre a mesma: ingestão de bebidas alcoólicas adulteradas ou destiladas de forma inadequada (licores artesanais ou “bebidas ilegais”) e contaminação com metanol industrial — geralmente mais barato em países asiáticos —, além de rótulos e cadeias de distribuição fraudulentas. Em alguns países, produtores caseiros utilizam métodos inseguros ou adicionam metanol para aumentar o volume e o teor alcoólico; em outros, circulam bebidas contrafeitas no mercado. 

Em um artigo de revisão bastante extenso, publicado em 2016 na revista SpringerPlus, o pesquisador Elijah Ige Ohimain, do Grupo de Pesquisa em Ecotoxicologia da Niger Delta University (Nigéria), mostrou que, em parte dos casos de envenenamento por bebidas contaminadas, o metanol tem origem no processo fermentativo, resultante da degradação de pectinas — um tipo de carboidrato presente nas células e paredes celulares de frutas e vegetais. Segundo Ohimain, outro fator relevante que contribui para a formação de metanol é o fato de as fermentações artesanais tradicionais utilizarem um consórcio microbiano, e não uma levedura pura. Nesse consórcio, frequentemente há espécies que favorecem a produção de quantidades maiores de metanol durante o processo fermentativo.

Os três episódios com maior número de mortes até hoje ocorreram na Índia, em 2019, com cerca de 168 mortes entre trabalhadores de plantações; na Índia, em 2008, com aproximadamente 150 mortes em surtos de bebidas adulteradas; e no Quênia, em 2000, quando 140 pessoas perderam a vida em uma das maiores tragédias africanas por álcool adulterado. Em 2025, os casos mais graves aconteceram na Turquia, causando 70 mortes em Istambul e 65 em Ancara.

Segundo o site da MSF, os números disponíveis têm limitações: muitos surtos não são formalmente identificados como envenenamento por metanol, há subnotificação e variação na qualidade das fontes. Os dados coletados a partir de notícias, publicações e comunicações pessoais podem não refletir a totalidade dos casos.

A prevenção exige fiscalização do mercado de bebidas, campanhas públicas de conscientização sobre os riscos do metanol e preparo dos serviços de saúde para diagnóstico e tratamento rápidos (antídoto e suporte). Sem isso, episódios semelhantes continuarão a se repetir, vitimando populações vulneráveis que recorrem a bebidas mais baratas ou informais.

Recentemente, a Anvisa autorizou a importação de milhares de doses de Fomepizol, cujo nome químico é 4-metilpirazol. O medicamento é um antídoto contra o envenenamento por metanol e etilenoglicol. O antídoto atua bloqueando a enzima álcool desidrogenase, responsável pela oxidação do metanol em compostos tóxicos.

Em resposta ao aumento recente dos casos de intoxicação por bebidas adulteradas, as autoridades brasileiras vêm adotando medidas para orientar os profissionais da saúde sobre como proceder diante de suspeitas de envenenamento por metanol. O Ministério da Saúde publicou a Nota Técnica Conjunta nº 360/2025-DVSAT/SVSA/MS, que traz orientações detalhadas para o atendimento, diagnóstico, tratamento e notificação dos casos de intoxicação por metanol após consumo de bebidas alcoólicas. O documento, assinado em 30 de setembro de 2025, também classifica esses episódios como Eventos de Saúde Pública de notificação imediata.

O Fomepizol é uma substância quimicamente simples, que o Brasil poderia produzir localmente, considerando que já dispõe de uma massa crítica de profissionais da química altamente capacitados, capazes de viabilizar a fabricação de grande parte dos medicamentos atualmente importados. O que falta é uma política de Estado voltada ao fortalecimento da indústria nacional de fármacos, capaz de reduzir a dependência externa e ampliar a autonomia científica do país.

Ao contrário do que ocorria nas décadas de 1970 e 1980, quando a química orgânica sintética ainda era pouco desenvolvida, o Brasil dispõe hoje de uma base sólida de químicos, farmacêuticos e outros profissionais altamente qualificados, formando mestres e doutores em química medicinal e farmacêutica. Esses profissionais têm plenas condições de sustentar o desenvolvimento da indústria nacional de fármacos, contribuindo para reduzir a dependência externa e ampliar o papel do país no cenário internacional.

Para transformar esse potencial em resultados concretos, diversas iniciativas nacionais vêm convertendo conhecimento científico em inovação industrial por meio das unidades da Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), uma organização social que tem como objetivo conectar empresas e instituições de ciência e tecnologia (ICTs) para impulsionar a inovação no país. Um exemplo na área farmacêutica é a unidade Farmavax, da UFMG (https://www.farmavax.ufmg.br/), criada com a missão de transformar ciência em negócio e aumentar a competitividade da indústria nacional de fármacos, biofármacos e vacinas.

Segundo o professor Ruben Sinisterra, coordenador da Farmavax, em três anos desde o credenciamento já foram contratados mais de R$ 15 milhões em projetos com pequenas, médias e grandes empresas. Especialistas vinculados à Embrapii desenvolvem as tecnologias necessárias para que essas empresas ampliem seu portfólio de fármacos em nível nacional. Uma parceria entre farmacêuticas nacionais e a Farmavax poderia viabilizar, por exemplo, a produção do Fomepizol.

Assim como ocorreu com a indústria aeronáutica brasileira — que se consolidou a partir de uma política de Estado voltada para a inovação e a qualificação técnica —, o Brasil também pode construir um caminho sólido na área farmacêutica. Com planejamento e investimento contínuo, o país tem potencial para alcançar autonomia científica e tecnológica, reduzindo sua vulnerabilidade em crises sanitárias e fortalecendo a capacidade de resposta diante de desafios globais. Iniciativas como a da Farmavax apontam um caminho possível para a independência tecnológica do Brasil na produção de fármacos.


Fonte: Prof. Dr. Luiz Cláudio de Almeida Barbosa (UFMG)



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