Topo Boletim Eletrônico da SBQ
   Notícias | Eventos | Oportunidades | Receba o Boletim | Faça a sua divulgação | Twitter | Home | SBQ

Boletim Eletrônico Nº 1672 - 30/10/2025




DESTAQUE

Negacionismo científico: do calendário gregoriano às vacinas


O tema do negacionismo ganhou destaque durante a pandemia de COVID-19, devido a pessoas que negavam a utilidade das vacinas e defendiam o uso de fármacos ineficazes no tratamento dos infectados. Embora pouco discutido na mídia antes da pandemia, o negacionismo científico é tão antigo quanto a própria ciência. Sempre que o pensamento humano avança sobre a ignorância ou desafia crenças consolidadas, surge uma onda de resistência — movida pelo medo, pela ideologia ou pelo apego à tradição. A recusa em aceitar evidências, ainda que incontestáveis, acompanha a história da ciência como uma sombra persistente. Hoje, essa resistência assume novas formas na era digital, espalhando-se rapidamente pelas redes sociais e reforçando antigos padrões de desinformação.

Em artigo recente na revista Química Nova (2025), intitulado "Negacionismo científico: prática antiga e persistente ao longo da história", os pesquisadores Barbosa e Filgueiras analisam casos desde o século XVI às atuais controvérsias sobre vacinas, mostrando que a oposição à ciência acompanha toda a trajetória humana.

Um exemplo marcante ocorreu em 1582, quando o papa Gregório XIII promulgou a reforma do calendário que usamos até hoje: o calendário gregoriano. A mudança corrigia um erro acumulado de dez dias no antigo calendário juliano, instituído por Júlio César em 45 a.C., com base em cálculos de astrônomos da corte de Cleópatra. Essa defasagem afetava diretamente a data da Páscoa e de outras festas religiosas, motivo de grande preocupação para a Igreja. Para ajustar o tempo, o dia 4 de outubro de 1582 foi seguido diretamente pelo dia 15. A mudança foi aceita de imediato pelos países católicos, mas provocou forte resistência entre os protestantes, especialmente na Inglaterra, onde se dizia que o Papa havia "roubado" dez dias da história. Por trás dessa recusa havia mais do que desconfiança religiosa — tratava-se de um típico caso de negacionismo, uma rejeição à evidência científica em nome de crenças e rivalidades políticas.

Somente em 1752, 170 anos depois, os ingleses cederam à necessidade prática de alinhar-se ao resto da Europa. A resistência, porém, deixou marcas: até hoje a Igreja Ortodoxa segue o antigo calendário juliano e, por isso, celebra o Natal e a Páscoa em datas diferentes do Ocidente.

No início do século XX, o negacionismo reapareceu de forma trágica na Revolta da Vacina, em 1904. A obrigatoriedade da vacinação contra a varíola, conduzida por Oswaldo Cruz e apoiada pelo presidente Rodrigues Alves, foi rejeitada por políticos, militares e parte da imprensa. O próprio Ruy Barbosa — jurista de renome — discursou no Senado contra a "tirania de injetar vírus no sangue". A revolta popular que se seguiu resultou em mortes, destruição e recuo da lei. Quatro anos depois, uma nova epidemia matou quase dez mil pessoas. A ciência foi derrotada — e o preço pago em vidas. Décadas mais tarde, o mesmo Ruy Barbosa se retrataria publicamente, reconhecendo a grandeza de Oswaldo Cruz.

Esses episódios — do calendário gregoriano às vacinas — mostram que o negacionismo não nasce da ignorância, mas da convicção. Ele floresce entre pessoas instruídas, políticos influentes e até cientistas consagrados. Sua força não está em provas, mas em narrativas que exploram o medo, o orgulho e a fé.

A única arma eficaz contra o negacionismo é a educação científica — não a mera instrução técnica, mas a formação do pensamento crítico, capaz de distinguir opinião de evidência, crença de conhecimento. A história demonstra que negar a ciência é negar o futuro. E, como lembram os autores, o negacionismo é como a Hidra mitológica: cada vez que se corta uma cabeça, outra logo renasce. A tarefa da ciência — e da sociedade — é não se cansar de cortar.

Para saber mais: Barbosa, L. C. A.; Filgueiras, C. A. L.; Quím. Nova 2025, 48, e-20250125. [Link]


Fonte: Luiz C. A. Barbosa (professor titular da UFMG) e Carlos A. L. Filgueiras (professor emérito da UFMG)



Contador de visitas

     

SBQ: Av. Prof. Lineu Prestes, 748 - Bloco 3 superior, sala 371 - CEP 05508-000 - Cidade Universitária - São Paulo, Brasil | Fone: +55 (11) 3032-2299