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Hugo Gallardo, pilar dos cristais líquidos no Brasil, fará abertura da 49ª RASBQ
Hugo Alejandro Gallardo Olmedo desembarcou no Brasil em 1982 em busca de uma oportunidade de trabalho. As coisas não andavam bem no Chile, seu país de origem. Casado, pai de quatro crianças, ele havia concluído seu doutorado em síntese orgânica na Universidad de Concepción, mas não tinha perspectivas de contratação para pesquisar e lecionar. Por um convênio e uma bolsa da Organização dos Estados Americanos (OEA), chegou como professor visitante no grupo do professor Giuseppe Cilento, na USP, em agosto daquele ano. Findos os seis meses da bolsa, migrou para a UFSC, onde seus conhecimentos seriam úteis para uma área ainda incipiente no Brasil, e sua carreira decolou.
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Momentos do Prof. Gallardo: Primeira aula presencial depois da pandemia; Com a camisa do seu Corinthians e os amigos e colegas, Prof. Eduard Westphal (e) e Prof. Ivan Bechtold; Com seus alunos em uma confraternização em casa.
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Hoje, reconhecido como um pioneiro e um pilar da pesquisa em cristais líquidos no Brasil, o Prof. Gallardo está aposentado, depois de décadas de conquistas, e de formar dezenas de pesquisadores. Mas mantém-se ativo na pesquisa como professor voluntário na UFSC e se integrou ao Laboratório de Catálise e Fenômenos Interfaciais. Ele será o conferencista de abertura da 49a Reunião Anual da SBQ, que será realizada de 15 a 18 de junho de 2026, no Expo Dom Pedro, em Campinas.
"Este convite foi uma surpresa muito grande e tremendamente agradável. Fazer a conferência de abertura de uma RASBQ é uma responsabilidade imensa", declara o pesquisador.
Gallardo chegou à UFSC em 1983 com a missão de ajudar a sintetizar e preparar moléculas no Grupo de Cristais Líquidos, criado poucos anos antes, dentro do Departamento de Física, pelos pesquisadores norte-americanos John Dale Gault e Ted Ray Taylor, e o indiano Subramania Jayaraman. Em 1986, Gallardo foi efetivado como professor adjunto e, em 1996, transferido para o Departamento de Química, onde se tornou professor titular. Foi bolsista de produtividade do CNPq desde 1985, e hoje é pesquisador sênior.
"Cristal líquido pode ser considerado o quarto estado da matéria, sendo obtido partindo-se de moléculas orgânicas. Ele têm propriedades comuns ao estado sólido e ao estado líquido simultaneamente, apresentando, porém, propriedades que não encontramos em outros estados da matéria", explica o Professor Eduard Westphal (UFSC), aluno de Gallardo de 2005 a 2016 e atual coordenador do Grupo de de Pesquisa em Materiais Moleculares e Mesomórficos da UFSC.
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Imagem microscópica de uma molécula derivada do TTT. A imagem indica que as moléculas discóticas formam pilhas de moléculas, e essas pilhas se agrupam em padrão a formar hexágonos
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O termo cristal líquido foi cunhado em 1889 pelo físico alemão Otto Lehmann, mas as primeiras aplicações demoraram muitas décadas para aparecer. A tela de cristal líquido (LCD) chegou aos relógios de pulso somente nos anos 1970, e hoje existe uma ampla gama de aplicações do material, seja na indústria de tecnologia da informação, no setor medicinal, na química analítica e em outras áreas.
"As possibilidades de aplicações são imensas, mas o que me interessa sobretudo é a química, a ciência básica, envolvida para conseguir chegar às aplicações", assinala o Prof. Gallardo. Na conferência de abertura, ele deve fazer uma retrospectiva da sua trajetória, mostrando como sua pesquisa foi crescendo em intensidade e qualidade com o passar do tempo, e seu amadurecimento como pesquisador. "Vou tentar refletir sobre o que um cientista no Brasil pode fazer em sua carreira, até onde pode chegar… A dificuldade para consolidar um grupo de pesquisa dentro de uma instituição…. Em 1983, eu não tinha equipamentos para caracterizar minhas moléculas… Dependia da boa vontade de meus colegas na Unicamp e no Rio para isso… ", recorda o docente.
Gallardo continua: "Comecei com pequenas moléculas, os primeiros conceitos… Para ter propriedades de cristais líquidos, as moléculas deveriam ser lineares – mas por que? Então comecei a trabalhar com moléculas curvadas para entender seu comportamento. Logo aparecem uma série de conceitos ligados à forma da molécula, e mostramos que moléculas curvadas também eram promissoras para as propriedades dos cristais líquidos. Então seguimos procurando propriedades diferenciadas e adicionando funcionalidades para diversificar possíveis aplicações…"
E assim, o Prof. Gallardo e seu grupo desenvolveram uma molécula que repercutiu internacionalmente. O Prof. Westphal descreve a conquista:
"A unidade tris-[1,2,4]-triazolo-[1,3,5]-triazina (tristriazolotriazina ou TTT) foi desenvolvida para uso no desenvolvimento de cristais líquidos e/ou materiais luminescentes em 2008, pelo grupo do Prof. Hugo Gallardo, e foi publicada na renomada revista Chemical Communications. Depois disso, o grupo do professor Hugo continuou trabalhando com esta unidade, desenvolvendo novos compostos derivados do TTT e estudando suas propriedades.
"Concomitantemente, houve um grande interesse da comunidade científica internacional, principalmente da Alemanha, que estudou intensamente este heterociclo, publicando diversos estudos com os TTTs. A partir de 2020, grupos de pesquisa chineses, canadenses e também ingleses começaram a publicar trabalhos com o uso dos TTTs para o desenvolvimento de moléculas que apresentam processo de Fluorescência Atrasada, um fenômeno que pode aumentar a eficiência dos OLEDs.
"Em 2023, foi publicado o primeiro TTT que apresentou fosforescência a temperatura ambiente, também pelo grupo do Prof. Hugo, em colaboração com pesquisadores da França e Reino Unido. Isto foi um marco, pois é não é comum um material puramente orgânico apresentar este fenômeno. Também em 2023, o TTT foi empregado pela primeira vez no desenvolvimento de polímeros luminescentes. Isto tudo demonstra a importância e versatilidade desta unidade para o desenvolvimento de diferentes materiais."
Atualmente diversos estudos ainda têm sido feitos nesse tema por ex-alunos do Prof. Gallardo, como os publicados em 2024 pela Dra. Marli Ferreira (Silesian University of Technology, em Gliwice, Polônia) e, em 2022 e 2024, pelo Prof. Westphal.
"O Prof. Hugo é um segundo pai para mim", afirma Westphal. "É um exemplo de pessoa que leva o trabalho muito a sério, mas valoriza igualmente a vida em família e com amigos. Ele me ensinou que a leveza no ambiente de trabalho é aliada da boa pesquisa."
Westphal entrou no Laboratório de Cristais Líquidos na Iniciação Científica. Permaneceu lá até o pós-doc. Saiu por um breve período para lecionar na UTFPR, e voltou à UFSC, onde acabou assumindo a coordenação do Laboratório.
"É uma honra e uma responsabilidade. O Prof. Hugo ajudou a projetar o Bloco da Colina, onde fica o Laboratório. Durante esse período em que pesquisou e formou muita gente competente, também montou um laboratório bastante completo. E agora tenho acesso a essa estrutura com o desafio de manter a qualidade no trabalho do grupo e continuar formando pesquisadores qualificados", relata. O Grupo mantém colaborações com grupos do exterior, do Brasil e também no Departamento de Física da UFSC, com o antigo parceiro de Gallardo, Prof. Ivan Bechtold.
A professora Iêda Maria Begnini (FURB) foi orientada pelo Prof. Gallardo de 1988 a 1997. Além das boas amizades feitas no Laboratório de Cristais Líquidos, ela guarda lições de como encarar os becos sem saída que a pesquisa científica apresenta comumente. "Tive alguns momentos bem difíceis, em que o trabalho não dava certo. Mas ele estava sempre ao nosso lado, buscando coisas novas na literatura, novos caminhos, e nunca nos deixando desanimar", conta.
Outra ex-aluna, Marli Ferreira, professora assistente e pesquisadora na Silesian University of Technology, em Gliwice (Polônia), ressalta o lado agregador do Prof. Gallardo. "Ele sempre gostou de juntar os alunos em celebrações e eventos sociais. Tem uma imensa paixão pelo que faz e nos inspira a superar as barreiras naturais da atividade científica. Tudo que aprendi em síntese orgânica, devo a ele", relata.
Tanto Iêda quanto Marli se beneficiaram de outra característica marcante do Prof. Gallardo: o incentivo à participação em eventos científicos. Como alunas, elas puderam apresentar trabalhos na RASBQ, na SBQ-Sul e em eventos internacionais da área de cristais líquidos.
Gallardo é sócio da SBQ desde 1984. Foi tesoureiro da regional de Santa Catarina, e participou ativamente da organização da 34ª RASBQ, realizada em Florianópolis, em 2011. "Todos precisam conhecer o ambiente da RASBQ, interagir com colegas e buscar novas possibilidades. Participar de eventos científicos propicia uma interação sempre bastante profícua", avalia.
Culinária e Corinthians
Hoje cidadão brasileiro, Gallardo orgulha-se de vestir a camisa do Corinthians, time que viu jogar pela primeira vez ainda em 1982, a convite do Prof. Iguatemy Lourenço Brunetti (FCF-Unesp). Era a época da Democracia Corintiana e de um time estrelado por craques como Sócrates, Casagrande, Biro Biro e outros. "Fomos ao Pacaembu para ver Corinthians x Ferroviária. Eu não conhecia nenhum dos times e, para minha sorte, o Corinthians ganhou. Se tivesse perdido, eu seria torcedor da Ferroviária."
Outro orgulho de Gallardo são as receitas de mariscos e frutos do mar que prepara regularmente para receber alunos e amigos em casa. "Como químico experimental, sempre gostei de cozinhar. No Chile, temos todos os tipos de mariscos, e aprendi ainda na juventude."
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Texto: Mario Henrique Viana (Assessoria de Imprensa da SBQ)
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