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A herança do 'azoto': raízes históricas na nomenclatura química moderna
Em conversa recente com um amigo historiador, ele me perguntou sobre um elemento químico cujo símbolo lembrava como sendo “Az”. De fato, o símbolo “Az” apareceu em muitos livros de química do século XIX, mesmo após Mendeleev ter adotado, em sua tabela de 1869, o símbolo “N” para o nitrogênio. Imediatamente me veio à memória um episódio ocorrido alguns anos antes, quando recebemos, em nosso departamento, um pesquisador português que apresentou uma palestra sobre compostos heterocíclicos. Entre os inúmeros exemplos que ele discutia, vários continham nitrogênio — elemento que ele sempre chamava de azoto. Comentei com ele que, no Brasil, há muito tempo utilizamos o nome nitrogênio para o elemento de número atômico 7. Ele até tentou, durante o restante da palestra, falar nitrogênio, mas, vez ou outra, escorregava para o azoto. E, se você prestar atenção, provavelmente já encontrou palavras acompanhadas do prefixo “azo”. Isso revela como a tradição pesa em nosso vocabulário e como, mesmo na ciência, somos resistentes à mudança.
O nitrogênio, elemento essencial para a vida, foi descoberto em 1772 pelo médico e químico escocês Daniel Rutherford (1749–1819). Em sua tese de doutorado, ele identificou um gás presente no ar que não sustentava a vida — um ar “mefítico”, capaz de causar a asfixia de animais.
O nome nitrogênio foi sugerido em 1790 pelo químico francês Jean-Antoine Chaptal, derivado do latim nitrum (salitre) e do grego genes (formador), devido à capacidade desse elemento de formar nitratos, classe de compostos empregada como adubos e também na fabricação de explosivos. Contudo, poucos anos antes, em 1787, o químico Louis Bernard Guyton de Morveau havia proposto o termo azoto, combinando os termos gregos ἀ (a- privação) e ζωή (zoé, vida), resultando em “privação da vida”, numa referência direta ao caráter sufocante do gás. Apesar disso, nitrogênio acabou se impondo internacionalmente, enquanto azoto permaneceu forte em Portugal e na França — o que explica o episódio que relatei no início.
Mesmo com o nome nitrogênio praticamente universalizado, o legado químico do antigo termo continua firme. Ele aparece, por exemplo, em azano, nome IUPAC da amônia (NH₃), em que o radical az- se combina ao sufixo -ano. Surge também no prefixo azo-, que indica o grupo funcional N=N, base estrutural de inúmeros corantes sintéticos que transformaram a indústria têxtil no século XIX. Está presente ainda nas azidas, compostos que contêm o ânion N₃⁻, essenciais em sínteses modernas e na chamada click chemistry, além de desempenharem papel em aplicações explosivas, como no caso dos airbags. Na microbiologia, aparece em gêneros como Azotobacter, bactérias fixadoras de nitrogênio fundamentais para a agricultura. Na medicina, sobrevivem termos como azotemia e azotúria, que descrevem a presença de compostos nitrogenados no sangue e na urina. Ainda na medicina, destaco que alguns medicamentos têm nomes comerciais em que o prefixo azo- está, de certa forma, embutido, como no caso do antibiótico azitromicina, cuja presença de nitrogênio em sua fórmula é evidenciada no nome que começa por azi. Outro medicamento bem conhecido é o AZT, ou zidovudina, um antirretroviral que foi o primeiro a ser aprovado para o tratamento do HIV/AIDS. O A do AZT vem do nome químico azidotimidina, em que o prefixo azido- se refere ao grupo –N₃. E, claro, o prefixo aza-, largamente usado na nomenclatura orgânica da IUPAC para indicar a substituição de um átomo de carbono por nitrogênio.
Por que o azoto resiste? Podemos dizer que o radical azo-/azot- continuou em uso mesmo após a padronização do nome nitrogênio porque muitos compostos e conceitos científicos já estavam consolidados com esses termos — especialmente no caso de corantes, grupos funcionais e microrganismos. Além disso, áreas como microbiologia e medicina preservaram essas denominações por tradição. Soma-se a isso o fato de que, nos países lusófonos, a adoção do termo nitrogênio ocorreu tardiamente, apenas no século XX, quando o vocabulário derivado de azoto já estava firmemente estabelecido.
Assim, o vocabulário científico ainda carrega um registro claro do passado, que sobrevive em nomes de compostos, organismos e conceitos médicos. Essa continuidade linguística mostra como a tradição tem um peso significativo — até mesmo em campos tão dinâmicos e sistematizados quanto a ciência. Em suma, embora o azoto tenha cedido lugar ao nitrogênio, ele permanece vivo na química do dia a dia, lembrando-nos de que ciência e linguagem sempre caminham juntas, tecendo pontes entre o passado e o presente.
Fonte: Luiz Cláudio de Almeida Barbosa (Professor Titular de Química – UFMG; lcab@outlook.com)
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Para saber mais, veja:
BARBOSA, L. C. A. Nitrogênio – o sétimo elemento. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2019. [Link]
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